Por Camila Borges, participante da Oficina de Jornalismo realizada pelo WhitepaperDocs em parceria com o Sebrae-ES.
Você provavelmente já se viu nessa cena: depois de horas vagando pelas sugestões de filmes determinadas pelo algoritmo da plataforma de streaming – geralmente as mesmas de sempre – e sem encontrar um título sequer que lhe agrade, você desiste e pede indicação a um amigo. Os algoritmos são muito úteis e às vezes acertam, mas ter a opinião de alguém em quem confia para sugerir dicas de consumo é fundamental para quem quer fugir do “mais do mesmo” e se surpreender com algo que esteja fora do seu radar – ou do radar do algoritmo.
Seja para produtos culturais ou não, a curadoria surge como alternativa para furar essa bolha de indicações baseadas no que já gostamos, abrindo espaço para o novo. No mundo da arte, o conceito de curadoria está ligado a indivíduos que selecionam, organizam e administram peças de arte. Embora tenha surgido no contexto artístico e museológico, atualmente a curadoria se estende a vários campos: há curadores de vinhos, roupas, brinquedos, músicas e também no âmbito da literatura.
A curadoria opera como uma ponte entre obras fora do “mainstream” e os interessados em novas descobertas no campo da cultura que estão fora do alcance do algoritmo.
Além de aprofundar o debate em cima de algo, esses “selecionadores” podem funcionar como uma estratégia comercial, visto que esses indivíduos costumam ser pessoas reconhecidas dentro de sua área e por isso a credibilidade em cima do produto é maior. O modelo tem sido muito utilizado por clubes de assinatura de diferentes segmentos, entre eles o da literatura.
Os curadores literários, dentro do contexto de clubes de assinatura, são aqueles que indicam e sugerem uma obra para ser distribuída entre os assinantes a cada mês. Sua escolha tem como base diversos fatores: geralmente a qualidade, a originalidade e até o quanto a obra afetou quem fez essa seleção.
Não é de hoje!
A ideia de clubes e entrega de livros não é necessariamente nova. Em 1960 surgiu o Círculo do Livro, um dos primeiros do Brasil. Sua divulgação era realizada por meio da Revista do Livro, veículo responsável pela difusão e conquista de novos associados. A revista circulou no Brasil entre 1973 e 1993.
Em 1982, o Círculo do Livro alcançou 800 mil sócios, em 2.850 municípios do País, com vendas de cinco milhões de exemplares. A ideia era que os livros fossem distribuídos “pelo Correio, de uma revista promocional quinzenal, pela qual o leitor, para continuar filiado ao clube, tinha que encomendar no mínimo um livro (entre cerca de uma dúzia)”, segundo consta na pesquisa de Laurence Hallewell em “O Livro no Brasil: sua história”.
Atualmente, os formatos dos clubes de entrega e assinatura de livros foram reconfigurados para se adaptar à modernidade, com entregas rápidas, qualidade maior dos produtos, integração com o digital (por meio de aplicativos e debates por videochamada, por exemplo). O segmento de livros é o mais popular entre os consumidores, representando 27% do total dos clubes. Em seguida, aparecem as categorias bebidas, com 18%; alimentos, com 17%; cuidados pessoais, com 12%; e pet, com 11%; segundo a empresa de tecnologia especializada na oferta de soluções para e-commerce Betalabs.
Um dos clubes literários com mais assinantes no Brasil, o Clube TAG – Experiências Literárias cresceu em meio à pandemia do novo coronavírus. De janeiro de 2020 até março de 2021, o número de associados havia aumentado 75% —saltando de 40 mil para 70 mil, segundo dado publicado pela CNN naquele período. O segmento de clubes de assinatura voltados para o público infantil também está em crescente expansão. Um dos mais populares, o Clube Leiturinha, contabilizava 175 mil assinantes em 2020, tendo crescido 15% durante a pandemia.
Minha Pequena Feminista – curadoria literária
Histórias infantis que possuem meninas e mulheres como donas do próprio destino e que fujam dos padrões pré-concebidos sobre o feminino ainda são minoria. Os contos de fadas mais clássicos trazem a narrativa da princesa que precisa ser salva por um príncipe, ou histórias em que o beijo de um homem pode mudar a vida da moça magicamente.
Livros que tragam uma narrativa diferente, em que a menina corre atrás dos próprios objetivos e muda o próprio destino, começaram a ganhar espaço e relevância nos últimos anos. A intenção do clube de assinatura Minha Pequena Feminista é introduzir livros infantis que prezem pela igualdade de gênero e apresentem personagens femininas empoderadas.
A fundadora do clube, Mayara Reichert, falou sobre o poder transformador de ter contato com esse tipo de pauta logo na infância: “As histórias atingem lugares muito profundos em nosso subconsciente e formam parte relevante de quem somos enquanto seres humanos. O poder das histórias na infância é enorme e precisamos ter muita cautela e cuidado com os discursos que são reproduzidos em cada uma delas, pois esses discursos acompanharão nossas decisões de maneira muito profunda”, explicou.
Os livros são selecionados pela equipe da Minha Pequena Feminista de acordo com a curadora fixa e referência técnica, a psicóloga Lavínia Palma, e pelas curadoras convidadas de acordo com as temáticas escolhidas para cada mês. Além dos livros, são enviadas cartas de apoio para os adultos responsáveis, produzidas pela equipe curadora.
Sobre o procedimento de seleção, a fundadora ressaltou que a principal proposta é trazer livros que normalmente estariam fora do radar das famílias. A curadoria literária proporciona uma experiência diferenciada de reflexão e abordagem de pontos de vista diversos sobre um determinado assunto.
“Nosso time de curadora tem backgrounds bastante diferentes dentro do mundo da educação, do ativismo e da cultura. Nosso time de curadoras é formado por psicólogas, jornalistas e pedagogas de todas as partes do Brasil. Elas, em parceria com todas as curadoras convidadas especialistas em diversos temas, congregam suas diferentes experiências e suas visões sobre o feminismo e a educação infantil e isso enriquece muito as possibilidades de temáticas e reflexões para os livros”, afirmou.
A intenção principal é que esses enredos sejam cada vez mais comuns, e não um ponto fora da curva. O objetivo da equipe do clube é aumentar o alcance dessas narrativas e que outras iniciativas surjam e quebrem de forma definitiva a bolha do que é apresentado pelos algoritmos.
“Nosso sonho é que todas as boas histórias onde mulheres – e todas as minorias – são protagonistas sejam tão famosas e comentadas quanto as histórias de super-heróis e príncipes que salvam princesas. Nosso sonho é também ser uma das iniciativas protagonistas ao fazer parte da construção de um futuro em que a intolerância e a exclusão sejam a exceção e não a regra”, concluiu.
Curadoria musical em podcasts
A curadoria também pode ser utilizada para relembrar e explicar a consagração de grandes obras de arte, a fim de compreender por que determinada produção chegou onde chegou. Na área musical não é diferente: muitos discos de qualidade altíssima são esquecidos pelas novas gerações mesmo tendo contribuído grandemente para os avanços nesse campo. Em formato de podcast, o Discoteca Básica é um desses programas que realizam uma curadoria musical ao selecionar álbuns que consideram de grande importância ao longo da história.
O Discoteca Básica é um podcast semanal apresentado pelo jornalista Ricardo Alexandre. A cada episódio o programa oferece contextualização histórica, datas, dados, trechos de entrevistas com nomes famosos da cultura pop e comentários sobre grandes discos da história da música mundial. O jornalista exerce a função de curador, pois seleciona com base em uma pesquisa e apuração prévia álbuns relevantes em quesito de qualidade, marca histórica e originalidade. Herbert Vianna já foi entrevistado para falar sobre Beach Boys, o DJ KLJay sobre Tim Maia, Luiz Fernando Veríssimo sobre Miles Davis, Pedro Bial sobre Raul Seixas, dentre várias outras celebridades.
Independente do gosto musical de cada ouvinte, ouvir a história e as histórias por trás de grandes álbuns é um incentivo para dar o play em novas descobertas, tendo o toque humano como fator fundamental para furar a bolha do óbvio.