A recomendação do distanciamento social desencadeou mudanças comportamentais que estão colocando em cheque o modo de ser, viver e se relacionar de parte tão grande da população, que estamos vivendo a realidade local mais global que já existiu. Portanto, o exercício de observar a comunidade e os territórios que vivenciamos e compartilhamos é fundamental.
A rua invadiu a casa sem pedir licença. De uma hora para outra, muitos foram obrigados a levar para casa o trabalho antes feito na rua, que se somou ao trabalho de casa, além das novas funções. Há uma cobrança por produtividade normal em condições anormais. Tem sido um desafio conciliar tantas atribuições, especialmente para as mulheres, que tradicionalmente sempre estiveram mais envolvidas com os cuidados da casa, da educação dos filhos e com a saúde da família, além de trabalhar fora. Isso desestruturou e desorganizou toda a rotina da vida cotidiana, causando a sensação de que o ano ainda não começou. E não foi diferente com os capixabas.
Para contribuir com estas reflexões, a Ecosocial iniciou um estudo exploratório, qualitativo e longitudinal com o objetivo de compreender o contexto, os comportamentos, os sentimentos e as percepções de uma realidade específica: a dos capixabas. Começamos a conversar com as pessoas nos primeiros dias de março de 2020, por meio de entrevistas em profundidade, conversas francas e abrangentes com mais de uma hora de duração, ouvindo moradores que representam o pensamento de diferentes perfis de renda, geração, gênero e localidade com o propósito de fazer uma reflexão sobre demandas, ideias e necessidades com foco no futuro.
Se por um lado a convivência familiar em “confinamento” aproximou as pessoas e fortaleceu relações, por outro, o convívio intensivo em espaços restritos e por tempo prolongado, potencializou problemas de relacionamento entre marido e mulher, entre pais de filhos, etc. Sob forte pressão e estresse observa-se um aumento de quadros depressivos, da violência contra a mulher, do número de divórcios, e até mesmo suicídio. Assim, num cenário caótico e de grandes incertezas os sentimentos que prevalecem entre os capixabas são o medo, a angústia e a ansiedade. Medo de quase tudo: medo de perder o emprego, medo de perder a renda, medo do contágio, medo da morte, etc. Mas os riscos são vivenciados da mesma forma por todos? A triste constatação é que as consequências da pandemia variam de acordo com a brutal desigualdade que já existia em nossa sociedade.
Mudaram também nossas práticas de consumo. Na falta de experiências reais, o online ganhou espaço para relacionamentos, descobertas e compras de toda natureza, incluindo produtos e serviços antes consumidos apenas presencialmente. Ao mesmo tempo observamos uma ressignificação da experiência de compra nos supermercados. Alguns passaram a frequentá-los como se fossem um shopping, local onde estavam acostumados a circular para ver e serem vistos por outras pessoas, a despeito dos riscos de contaminação. É o consumo como prática comunicativa, eminentemente social e cultural. Daí o desafio de controlar a abertura gradual do comércio regido por protocolos de segurança. É bom lembrar que o pragmatismo e escolhas racionais não governam o mundo das compras. É forte o peso do simbólico.
Não por acaso, nomeamos o estudo com os principais sentimentos em torno da pandemia e suas consequências na vida das pessoas: medo e angústia. Nesse cenário, talvez seja cedo para vislumbrar nossa vida pós pandemia do Covid-19. Diante de um futuro sem referências, uma realidade hiper complexa e em rede, que foi atravessada de forma avassaladora em todas as dimensões da vida. Vivenciando transformações aceleradas por um fenômeno de abrangência mundial, responsável pela maior crise sanitária, social e econômica do mundo globalizado, acreditamos que o impacto das notícias ainda é tão grande, que neste momento antes de encontrar as possíveis respostas, é necessário fazermos as perguntas corretas.
Michel Vasconcelos e Hélio Gualberto