Aplicativos de entrega dão oportunidades a pessoas com deficiência, mas para que a verdadeira igualdade se faça presente, é preciso tratar desigualmente os desiguais
Tempos atrás foi publicada uma reportagem na BBC Brasil contando a história de um cadeirante que trabalhava realizando entregas de comida na Avenida Paulista, em São Paulo, através de gerenciamento de mão de obra via aplicativo. Segundo noticiado, o “trabalhador na multidão” fazia entre cinco e seis entregas por dia, numa “jornada” média de 8 horas de trabalho, recebendo uma contraprestação financeira aproximada de R$ 400,00 por mês, valendo destacar que o cadeirante sequer conseguia fazer pausa para se alimentar durante sua jornada de trabalho.
Analisando essa notícia, tem-se duas impressões iniciais: a primeira é que os aplicativos de entrega dão igualdade de oportunidade às pessoas com deficiência (PCD) e, a segunda, que este trabalho, utilizando a linguagem da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não é decente.
Sem adentrar em questões relacionadas à existência de vínculo empregatício, principalmente em relação à existência ou não de subordinação, no último dia 21 de setembro comemorou-se o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência e, naturalmente, a temática se destacou nos meios de comunicação, o que gera algumas reflexões. E a história do cadeirante entregador de aplicativos com a contraprestação pífia, apesar de um significativo esforço do trabalhador, remete à lição de Ruy Babosa, no livro “Oração aos Moços”:
“A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.”
A oportuna citação, que comemorou 100 anos em 2021, desde que foi ouvida pela primeira vez, em 29 de março de 1921, expressa o conceito que os desiguais devem ser tratados desigualmente para que a verdadeira igualdade se faça presente, conceito este presente em nossa Constituição Federal e diversas legislações infraconstitucionais, inclusive na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (13.146/2015), bem como em Recomendações da OIT.
Assim, a questão que surge é se a gestão algorítmica de mão de obra pelas empresas de tecnologia devem “calibrar” os algoritmos para respeitar o ordenamento jurídico do País, de modo que, por mais que se goste e deseje a aplicação das tecnologias que ajudam e desenvolvem a humanidade, não se pode admitir poderes supraconstitucionais aos programadores e admitir a execução pelos algoritmos de raciocínios, instruções ou operações para alcançar um objetivo, sem adequação ao ordenamento jurídico pátrio.
É certo que a igualdade formal (quando todos são tratados da mesma maneira), que possibilita ao cadeirante disponibilizar sua força de trabalho em prol dos aplicativos gestores de mão de obra, não pode ser aceita nos algoritmos, sob pena de representarem um típico tokenismo –esforço superficial ou simbólico para ser inclusivo – algoritmizado.
Assim, estes algoritmos devem executar raciocínios, instruções ou operações para alcançar o objetivo empresarial da empresa de tecnologia, mas buscando uma igualdade material, que é tratar desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdade, ensina Aristóteles.
O raciocínio é bem simples: o trabalhador com deficiência que disponibilizar sua força de trabalho via aplicativo gestor de mão de obra, em equivalente circunstâncias que o outro trabalhador sem deficiência, deve conseguir equivalente contraprestação financeira.
Outro ponto que merece a devida atenção em relação à inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, sem discriminação, refere-se à obrigação das empresas de tecnologia que atuam via aplicativo gestor de mão de obra possuírem percentual mínimo de trabalhadores PCD, tal como prevê o art. 93 da Lei n. 8.213/91. Valendo citar a reportagem da BBC, que dá uma pequena dimensão do tamanho da discriminação algorítmica existente:
“Em nota à reportagem, o iFood afirma que atualmente há 83 mil entregadores cadastrados na plataforma. Uma pesquisa feita pela empresa em junho passado (2020) apontou que cerca de 1% das pessoas que responderam aos questionários possui algum tipo de deficiência.”
Não se pode deixar de lembrar que as empresas que desejam atuar no mercado de trabalho brasileiro devem respeitar os princípios constitucionais da atividade econômica, principalmente sua função social e a busca pela redução das desigualdades sociais, sendo que os artigos 37 e 78 da Lei n. 13.146/2015 bem normatizam a inclusão dos portadores de deficiência no mercado de trabalho, ciência e tecnologia.
Vale ressaltar que as empresas de tecnologia possuem, se assim desejarem, maior capacidade e velocidade de implementação de políticas viabilizadoras de uma maior igualdade material dos trabalhadores por aplicativo, via ajustes no algoritmo, de modo que este respeite o ordenamento jurídico.
Bruno Milhorato Barbosa | advogado especializado em Direito do Trabalho